Pensamento da noite
Assassinato a sangue frio.
Musíco (con)texto: Roads |Portishead|
É a tragédia...
Back to school...
Metamorfoseando...
Uma sensação de conquista, sem ter conquistado nada. O início de um longo e incerto caminho. Apenas mais um passo. Mais uma etapa. No entanto, e por mais etapas que tenha atravessado, nenhuma é como esta. "Agora é a sério!" digo-o a mim próprio, talvez para marcar o momento.
Futebol e a vida...
Quero a "fucking word"...
(3) Nota Final: Approved for all audiences
Pensamentos soltos
A noite
Hoje a noite trouxe-me sorrisos, boa disposição, recordações e um matar de saudades. Passei o meu tempo ao lado de pessoas com as quais partilhei muito da minha vida. Um vida que decidiu seguir rumos diferentes. E que depois de muitos dias de ausência decidiu cruzarem-se uma vez mais à noite.
Agora celebro a noite, esta noite e as noites que virão. Que traga tão bons momentos como os que tenho passado nestas noites que passaram...
Assustado (...ou vão dar uma curva!!!) - Sim, é sobre o Islão!
A música (So Here We Are)
Por vezes esqueci-me de entrar neste mundo, ouvia mas não via. Comprometido a viver uma vida de adulto, a música passou a ocupar um lugar secundário, um porto de abrigo passageiro. Uma vida moderna cheia de obrigações e problemas, mais imaginados que reais.
E depois, numa altura de mudança, quando nada poderia prever, eis que a música inrompe uma vez mais na minha vida. As emoções retornam, os acordes fazem de novo vibrar todas células do meu corpo, e este mundo volta a estar aberto para mim...
O radicalismo da fome
Espaço em branco
O dia da saia (La Journée de la jupe)
Neste, com a brilhante interpretação de Isabelle Adjani, é nos servido várias realidades, de uma forma neutra e simples. Não pega em estereotipos, apresenta-nos personagens reais.
Numa época em que muito se fala de cultura islâmica, imigração e ensino público este filme dá-nos um pequeno vislumbre dessa realidade sem nunca nos empurrar para nenhum dos lados da história.
Simplesmente a ver!
Aos ciganos desta vida...
Good Old Days
Ainda vivemos numa sociedade onde a idade não é vista como algo positivo, mas muitas vezes algo a esconder ou subtrair, como fosse motivo de vergonha alguém ter oitenta, cinquenta ou trinta anos.
Associamos alguns sentimentos a esse passar do tempo e utilizamos normalmente duas opções: ou vincamos os mesmos com os “no meu tempo é que era…” e outras expressões tão habituais como gastas, ou então evitamos ao máximo começar o quer que seja com tais expressões.
Quando começa esta sensação? Eu diria desde o tempo que tenho tempo para sentir isso. E é isso que significa sentir os “good old days”. É o reconhecimento da sorte que tive de ter tido emoções fortes e experiências únicas. Significa que sinto saudades de “algos” ou “alguéns”. E sentir saudades é algo bom e constante na minha vida. Eu sinto saudades de há duas décadas, dos meus vinte anos ou do último fim-de-semana.
Os meus “good old days” são também os “good old todays”…
Music From My Past: "Changes" 2Pac
Redescobri há pouco tempo esta música. Durante bastante tempo o Rap, na sua vertente Gangsta foi um dos meus estilos preferidos. Na realidade ainda o é, embora já tenha desaparecido há muito tempo. Os sons combinados com a força das letras mexiam bem dentro de mim. Para mim a música não é um simples conjunto de acordes, é uma forma de arte que nos entrega emoções e distribui ideias.
Não deixa de ser algo irónico reencontrar agora esta musica. A meio da mesma 2 Pac diz: "America isn't ready to see a black Presidente yet..."
Afinal something change...
Ser, ter e viver...
Eu continuo pouco preocupado com isso e mais preocupado em entender algo mais da vida. Para mim ainda é um pequeno segredo que vou desvendando aos pouco (será que devo escrever "vida" com um V ou com um v?).
Dias seguintes - tributo a António Feio
A rotina impõe-se mas já não é a mesma. Já não pode ser. Sentimos então a ausência desse alguém que sempre nos marcou. Apercebemo-nos de que todos aqueles pequenos momentos prenchiam parte da nossa vida.
Os dias seguintes são sempre mais difíceis. Mas são tambéns os dias em que nos apercebemos que a morte é apenas um reminder de que ainda estamos vivos e que é agora, e não depois, que temos que apreciar quem está à nossa volta.
A quem partiu resta-nos recordar o melhor que ele nos deu para que seja eternamente vivo.
E neste caso a oferta foi a mais generosa que um ser humano pode dar: um sorriso. Por isso hoje, apesar da tristeza, sorrio...
Imaginar o futuro!
Se o fim do sec. XX alimentou muito a imaginação e essa imaginação permitiu muita inovação e mudanças nas nossas vidas, desde do inicio deste seculo que se foi esbatendo esse combustivel até chegarmos a 2010 sem a capacidade e a ousadia de imaginar o futuro. E sem isso iremos continuar a definhar...
Por mares nunca antes navegados...
Não sei muito bem explicar como chegámos aqui, mas a verdade é que nunca antes existiu uma tão grande ausência do mínimo bom senso da actividade politica e já agora também económica. Parece que nos esquecemos de alguns princípios básicos de viver em sociedade e paulatinamente destruímos os laços de solidariedade que mantém uma sociedade como sociedade e não simplesmente um grupo de indivíduos que habita espaços conexos.
A argumentação relativamente às SCUT's é sintomático disso. Esta moda do utilizador-pagador é mesmo isso, uma moda. Pelo menos da forma como tem sido argumentada. Certamente faz sentido em algumas situações, mas não em todas. Existem AE's que podem ser SCUT's e devem ser SCUT's, outras que nem por isso.
De vez em quando até ouço que se deve aplicar a mesma coisa à saúde e à educação. O argumento? Tão simples como: "Eu não tenho que pagar a saúde dos outros ou a educação dos outros!"
E eu pergunto-me: então e os "outros"? Deverão eles sofrer pela estupidez alheia? Parece-me que tal seja no mínimo injusto...
Assim, com esta quebra de solidariedade e de bom-senso, arriscamo-nos mesmo a caminhar por mares nunca dantes navegados! E não serão mares calmos certamente...
Tributo a Saramago
Tive o privilégio de ser contemporaneo de Saramago. De conhecer os seus livros, os seus discursos e o seu pensamento. Estranhamente só conheci Saramago numa altura bem tarde da minha vida, no entanto julgo que foi na altura certa, numa altura que já tinha trilhado o meu pensamento e portanto tinha uma outra capacidade de compreender Saramago.
Ao ler pela primeira vez Saramago compreendi o que é ser um génio e quais os meus limites, compreendi também que Saramago nunca seria mais um escritor português mas que entraria directamente para aquele restrito grupo de génios que este país consegue de tempos a tempos criar.
O unico arrependimento é o de não ter tido a possibilidade de ter uma longa conversa com ele. Infelizmente agora resta-me apenas o seu enorme legado para responder ás minhas duvidas pois a pessoa que era Saramago desapareceu nesta ultima sexta feira de primavera...
Solução para os problemas de Portugal
Julgo que neste tempo descobri a solução para os problemas de Portugal: irmos todos de férias. Isto é pararmos durante um mês para irmos conhecer outras realidades. Talvez quando voltassemos com a cabeça mais leve e dessa maneira deixassemos de falar de tantos problemas e os começassemos a resolver.
No-mad: Em viagem
Escrevo pela prineira vez em viagem. Depois de um ano e meio de trabalho nao stop consegui finalmente gozar umas ferias. E dificil descrever inteiramente a sensacao de estar em viagem. O destino foi a Europa Central (algumas cidades) e Amsterdao, e tem sido uma experiencia fenomenal. Para alem do prazer habitual de viajar, acabo por ir parar a um destino que embora esteja aqui tao perto, na realidade e um mundo um pouco desconhecido de nos (pelo menos de mim).
E tem sido uma enorme aprendizagem, quer de locais, pessoas, acontecimentos, etc... No fundo tem sido o que qualquer viagem devera ser: um enorme prazer.
Por agora e tudo o que posso escrever pois o tempo e limitado e nao tarda nada ficarei sem o computador. Escreverei mais tarde sobre esta enorme experiencia que tem sido a minha viagem.
P.S. como e bom estar afastado da realidade portuguesa... :)
Assim vale a pena (ir à feira do livro)
Escusado será dizer que se tornou num ritual anual. Assim depois de um ano de ausência (com a overdose de trabalho não pude ir o ano passado) lá regressei. Desta vez foi à noite, algo que ainda não tinha feito. Não estava tão cheio como habitualmente. E lá fui eu subindo o parque, ziguezagueando pelas bancadas de editoras. Não tinha nenhum livro em mente mas estava á espera de comprar um autor português. Quando cheguei ao espaço Leya já estava um pouco frustrado pois ainda não tinha encontrado nada. No entanto tinha a esperança de satisfazer essa vontade nesse espaço. Depois de um bocado, e de ter saltado várias bancas, a minha frustração aumentou significativamente. Todos os autores que tinha escolhido estavam estupidamente mais caros do que eu imaginaria. Fui então para a Caminho pois, depois de me ter rendido à realidade dos preços, achei que Saramago me daria o melhor value for money que poderia obter. Mas ao desfolhar o Caim lembrei-me que tinha um livro de Saramago por ler. Pensei que seria estupido comprar um novo livro e comecei a minha descida.
Reparei na bancada da Fnac e decidi ver o que tinha. Resumindo o que se passou apenas digo que voltei a sorrir como uma criança. E de repente estava a comprar que nem um maluco. Comecei pelo "A arte da guerra" de Sun Tsu, um livro para ler com calma mas que sempre quis ter mas que era sempre demasiado caro. De seguida, e sem nenhuma ordem definida comprei o "Human, all too human & Beyond good and evil" de Nietzsche, um autor que sempre quis ler, o "The Pickwick papers" de Charles Dickens para me deixar o meu espirito animado e apurar uma parte da minha escrita, o "Tom Sawyer abroad & Tom Sawyer detective" de Mark Twain para finalmente conhecer o Tom que sempre me apaixonou, o "Alice no país das maravilhas" de Lewis Carroll para entrar num mundo que faz mais sentido que aquele em que vivemos actualmente, o "Rights of Man" de Thomas Paine para entender melhor o Estado tal como ele é hoje e o "Democracy in America" de Alexis de Tocqueville para regressar a uma America que anda bastante escondida nos tempos que correm.
E quando preparo-me para me ir embora ouço que Richard Zimler, um escritor que aprecio bastante, irá fazer uma apresentação de uma curta-metragem que ele escreveu. Não querendo perder a oportunidade de o ver ao vivo lá regressei ao espaço Leya. Gostei dele, que me pareceu simples, humilde e simpático. No meio da apresentação voltei a perceber porque é que faz sentido o Estado patrocinar o cinema. A verdade é que essa curta-metragem que eu estava a ver nunca teria existido se o Estado não tivesse contribuido. Essa mesma curta-metragem que recebeu um prémio num festival importante de Nova Iorque. Depois do filme ainda tive oportunidade de fazer um pergunta ao escritor, vencendo assim a minha natural timidez. Depois veio a apresentação de um movimento artistico, e entre um momento e outro ainda tive tempo de ter inspiração para o meu segundo conto que vou escrever.
Dei-me por satisfeito e decidi terminar a minha visita. Fui de novo ziguezagueando as bancadas e ainda consegui encontrar mais um livro. Foi o "Actualidades" de Albert Camus, autor de um dos meus livros favoritos e alguém que quero conhecer melhor.
Agora sim, agora estava preparado para me ir embora. E se não se importam nos próximos meses estarei ocupado a ler...
P.S. só por curiosidade estes livros todos custaram-me menos que 31 eur. Talvez a nossa falta de hábito de leitura não derive tanto da nossa cultura mas sim dos preços estupidamente caros dos livros editados em Portugal.
No-Mad: Libdem Experience
Se fosse turista esta experiência teria sido terrível. Dois dias e meio a trabalhar não é claramente a ideia de viagem perfeita para um turista. No entanto tenho de confessar que foi uma experiência muito enriquecedora para mim.
Raramente tenho oportunidade de conhecer a faceta mais “prática” de uma cidade. Sempre tive curiosidade em saber como é que as pessoas interagem entre elas, como são as suas casas ou como são os bairros das pessoas que realmente vivem na cidade. Eu sei que foram apenas dois dias e meio, que no fundo nunca abandonei a condição de “extraterrestre”. No entanto foram dois dias intensos, e de intenso trabalho e de convívio com inúmeras pessoas.
A vantagem deste tipo de viagem é que temos uma experiência por dentro em vez de uma mera experiência externa. Temos uma pequena imagem das pessoas no seu “habitat” natural, da sua simpatia e generosidade, da sua vontade de ter o trabalho pronto, mas reservando sempre espaço para um convívio ao fim do dia no pub mais próximo.
Uma campanha na Inglaterra é uma perfeita loucura, principalmente na última semana. As máquinas não param de imprimir, as pessoas correm sem parar. Qualquer ajuda é bem vinda porque trabalho nunca falta. Existem diferenças profundas na atitude e na forma de se fazer campanha. As campanhas em Inglaterra, dado os círculos uninominais, têm uma componente bastante local e o esforço é feito bairro a bairro, rua a rua, porta a porta. Todos os dias estão a sair panfletos e serem distribuídos. Elaboram-se cartas personalizadas. Contam-se votos e existe uma forte pressão pessoal. Infelizmente não pude estar presente no dia das eleições, que é quinta-feira, mas dizem-me que esta loucura é ainda maior, com a distribuição a começar às 04h00 da manhã e termina quando as urnas fecham.
E no meio desta loucura pude ainda aproveitar para experienciar todos os pequenos detalhes que na minha estadia anterior me tinham escapado. Por exemplo, de como o conceito das caixas de correio na Inglaterra é profundamente diferente das nossas, sendo maioritariamente colocadas nas portas da própria casa, mesmo que seja de um apartamento de um prédio. E de como este facto vez criar formas para que as pessoas não olhem directamente para dentro das casas através das caixas de correio. Outro exemplo é a forma como o espaço público está sempre impecavelmente arranjado, não deixando antever que por dentro de um prédio, que passaria de classe média cá, está algo muito próximo de habitação social, cheia de culturas e cheiros distintos.
E é isto que tornou esta experiência algo única, pois ao estar num sítio a executar uma tarefa que me obrigou a ir a todo o bairro, tive oportunidade de ver todos estes detalhes, todos os pormenores que uma visão mais superficial me escaparia.
Numa pequena palavra esta experiência foi: Brilliant!
Afinal ele não era corrupto, apenas estupido...
Honestamente nem sei o que dizer sobre isto. Poderia ter um discurso catastrofista mas honestamente não me apetece.
Prefiro antes utilizar uma outra abordagem. Visto que ficou provado que não foi suborno pois o Sá Fernandes não tinha poder, pela primeira vez chamar alguém de estupido fundamentando-me numa decisão no tribunal. É que é preciso ser-se incrivelmente estupido para se oferecer 200.000 eur a uma pessoa para facilitar num negócio quando essa pessoa não tem poder para tratar desse assunto. Aliás esta pessoa vai para além da pura estupidez. Este acto revela uma inteligência digna de uma barata. Pensando melhor peço desculpa a todas as baratas por esta comparação abusiva!
A unica coisa positiva desta situação toda é que abre um mundo novo na arte de insultar pois se até agora tinha que medir as minhas palavras para não ser processado em tribunal agora posso utilizar um processo em tribunal para insultar. Já que os tribunais deixaram de ter utilidade em termos de justiça é bom saber que ainda mantêm alguma utilidade.
Da propriedade privada (I)
Como já sabem eu sou um leigo nestas materias. E também também já sabem que tal não me impede de escrever sobre tais assuntos. Assim eu diria que a propriedade privada é algo que é detido em exclusividade, ou quase exclusividade, e que o mesmo individuo poderá fazer com esse algo o que quiser desde que tal acção não interfira com a esfera de liberdade de outro individuo. Não sei se é a definição mais correcta mas é a que melhor espelha o meu conceito de propriedade privada.
Se olharmos para a nossa história poderemos verificar que o alargamento da propriedade privada foi uma enorme conquista no sentido de uma maior liberdade e exercício dessa liberdade. Não vai muito tempo que apenas uns quantos teriam direito a deter uma propriedade privada.
Dito isto avanço para o que considero ser um dos grandes equivocos que existe actualmente acerca deste conceito. Para muitos o conceito de propriedade privada não é um conceito positivo (com isto quero dizer como conceito que sobrevive por si próprio) mas sim negativo (com isto quero dizer um conceito que depende de um outro para existir). Isto é, para muitos propriedade privada é tudo o que não é propriedade do Estado. Para agravar, este a aceitação desta definição saiu reforçado porquanto no ultimo seculo a luta ideológica foi a da guerra fria.
Se é verdade que reconheço que o direito de propriedade privada se opõe, em grande medida, à propriedade colectiva, para mim é profundamente errada que a propriedade colectiva é necessariamente estatal. Aliás se repararmos bem vivemos uma massificação da propriedade colectiva em contraposição da propriedade privada.
Já poucos são os individuos que detem meios de exploração por exemplo. E com este colectivização acontece uma vez mais o esmagamento do individuo e da sua liberdade. Se olharmos para os ultimos anos nunca o individuo viu os seus direitos serem suprimidos com tanta facilidade e legalidade como actualmente. E o mais irónico é que este movimento tem sido alimentado por quem mais apregoa defender o individuo...
"Solidão" by Jassie Pieme
Extrato de texto da autoria de Jassie Pieme
Raquel Freire, o clítoris e a polémica…
Parece que em plena Antena 1 num programa de manhã a Raquel Freire disse, no contexto desse programa:
“(…) Deixo um desafio a todas as mulheres que me ouvem: descubram o vosso clítoris, daqui até à próxima semana. E masturbem-se. E vejam como é bom. E queria terminar com um convite aos homens: quando estiverem com uma mulher, descubram o clítoris dela. E percebam. Acho que no século XXI já é preciso que as mulheres e os homens saibam que existe um orgasmo feminino e que ele é tão importante e maravilhoso numa relação sexual como um orgasmo masculino (…)”
O que, ao que parece, fez com que um ouvinte protestasse afirmando que:
“Hoje, às 09h 50, dia 16 de Março, ouvi a senhora Raquel Freire a dizer na rádio pública para as mulheres se masturbarem uma vez por dia. Repito: às dez da manhã. Acabam de perder um ouvinte. Vocês não têm respeito pelas crianças. Essa senhora devia ser despedida. Ou retratar-se. É escandaloso este tipo de serviço público. Como se explica isto a uma criança que está a ouvir rádio? Repito: cá em casa ninguém ouve mais a Antena 1.” (bolds da minha autoria)
Ora antes de abordar este protesto, gostava de referir que o que a Raquel Freire fez foi um acto de altruísmo. Pelo menos é o que apelido a alguém que dá um conselho, bom ainda por cima, sem esperar nada em troca e sem que lhe fosse exigível o mesmo. É verdade que preferia que esse mesmo acto fosse inútil por já não existir essa necessidade, no entanto reconheço que ainda não vivemos nessa momento.
Posto isto gostaria então de comentar este protesto, ou pelo menos partilhar o que penso do mesmo. A primeira parte intrigante para mim é alguém considerar o que aconteceu ser “escandaloso”. Numa fase em que a palavra escândalo, e seus derivados, está em alta, não consigo associar essa palavra às palavras que a Raquel proferiu.
Outra coisa intrigante é o pedido de retratação que este ouvinte faz (sobre o pedido de despedimento não é intrigante. É simplesmente parvo). Uma pessoa para se retratar teria que ter feito algo de errado. E o que é que o ouvinte viu de errado? Será que a masturbação é algo de errado? Será que o próprio ouvinte não se masturbou? E tendo feito acha que fez alguma coisa de errado? Será que o pedido que a Raquel fez é algo de errado? A única coisa de errado é que esse pedido ainda faça sentido no século XXI, pois julgo que cerca de 10.000 anos de humanidade seria suficiente para o ser humano (homem ou mulher) descobrir o clítoris e a importância do mesmo para o prazer. Será esse prazer errado? Não estou a ver como…
Passemos então à terceira coisa intrigante para mim, a questão das crianças. Parece-me que esta foi o centro do problema para este ouvinte, pelo menos pelo que disse. E é isto que não entendo. Será que ele não tem o mínimo de discernimento para perceber que o publico alvo desta estação não é propriamente as crianças? Por outro lado de hora a hora lá vem as noticias, que contém informação bem violenta para uma criança. Será que isso também devia de ser censurado? Aliás por que raio é que a ignorância é a melhor forma de educar uma criança? Não deveria a pedofilia, o roubo, o assassinato serem temas mais difíceis de explicar a uma criança?
O meu agnosticismo/ateísmo...
Começando pela grande questão: existe ou não um deus? Ora eu não consigo responder a esta questão, e desconfio da pessoa que me diz saber a resposta. No entanto a minha relação com esta pergunta é identica a que terei se me perguntarem se existem ou não lobisomens, se 90% do universo é constituido por algodão doce, se existe ou não um coelho da duracell no espaço a comandar os nossos destinos. Qualquer uma destas afirmações é impossível de ser provada se é falsa ou verdadeira pois essa dúvida existirá enquanto existir imaginação humana.
E é esta imaginação humana que me leva ao segundo ponto da minha relação com a religião. É que enquanto a existência de Deus é algo que eu nem concordo nem discordo (honestamente é me irrelevante) já a religião é um fenomeno em grande medida humano, e de tudo á volta deste tema o mais humano que existe é a sua organização que vulgarmente chamamos de igreja.
Se isto é ateismo ou agnosticismo não sei. É pura e simplesmente a minha posição perante esta temática.
A Retórica do "Cardume"
Durante bastante tempo nunca consegui agarrar uma forma de argumentação que, embora conseguisse saber exactamente o que era, não tinha encontrado uma imagem ou palavra que resumisse essa mesma táctica de argumentação.
Essa argumentação, normalmente aplicada na defesa de determinadas instituições, consistia em atribuir as qualidades positivas à Instituição em si e as negativas aos elementos particulares dessa mesma Instituição (embora seja utilizado para se defender conceitos, nesses casos não apresenta a mesma eficácia).
Assim esta retórica apresenta o mesmo comportamento de um cardume, que quando quer apresentar força apresenta-se como um todo quase indivisível. Nesse momento não existe indivíduos mas apenas a Instituição. No entanto se esse todo é atacado (neste caso por um argumento), o todo quebra-se na zona em que foi atacado, podendo sacrificar algumas das suas unidades individuais para elevar a sobrevivência do cardume. Assim assistimos à individualização dos elementos do cardume no momento desse ataque.
Tal retórica é bastante visível por exemplo nas discussões sobre a ICAR. Quando se trata de falar dos benefícios que a mesma tem na sociedade, os seus indivíduos são incorporados no todo e falam na ICAR (o “cardume” neste caso), quando se fala de acções negativas (p.e. encobrimento dos actos de pedofilia) então argumenta-se que é acção do individuo/indivíduos que tal não espelha a verdadeira natureza do mesmo.
O problema típico desta linha de argumentação é que a mesma falha, quase sempre, na coerência racional (ou dita de uma forma mais prosaica, é um argumento irracional). Seguindo ainda o exemplo que dei anteriormente, se a pessoa argumenta que a acção reside no todo, então ela, independentemente de ser uma acção positiva ou negativa, tem de se manter no todo para se manter um argumento coerente. Se por outro lado o argumento é que a acção é individual, então ela tem de se manter a nível individual ao longo da argumentação sob pena de se tornar um argumento incoerente e ilógico.
Ainda sobre a discussão icariana...
É que enquanto um laico poderá ter uma religião um ateu por definição não a tem.
Outra coisa que não entendo é porque é que eu sendo ateu, tal me proibe de criticar a ICAR, o seu modo de funcionamento e o seu impacto na sociedade. Até julgo que essa minha posição me permite ter uma posição mais isenta (visto que estou do lado de fora) e racional que um religioso possa ter.
Mas enquanto uma pessoa religiosa entender qualquer critica como um ataque tal debate nunca terá espaço para ocorrer. Este é apenas um dos muitos sintomas que Portugal em algumas coisas ainda está muito atrasado, e desconfio que neste caso nem de TGV lá chegamos
Kurt is dead...
Passado tanto tempo julgo que o que morreu foi o direito à depressão. Morreu também um estilo de vida "artistico". Desde essa altura que drogas, bebidas e depressão está fora da música. A partir desse momento nunca mais a industria permitiu alguém irreverente chegar lá. Tudo passou a ser mais formatado.
Não quero dizer com isso que foi o fim da boa música, essa continue a existir, no entanto morreu, talvez naquele dia, os sentimentos que apenas conseguem ser expressos com aquela maneira de viver.
Critíca à ICAR
De agressor a ICAR quer actualmente passar a vitima, vendo nestas criticas um ataque à sua instituição. A estratégia não é nova e não é aplicada apenas em exclusivo pela ICAR. Normalmente é seguida por quem quer desviar a discussão para um campo diferente daquele em que a discussão está.
Um dos problemas dessa estratégia é que a mesma é contraproducente exactamente no campo onde a ICAR quer demonstrar a sua autoritas: o campo da moral. Dado o teor do assunto, não existe acto mais imoral do que o de transformar acusações de pedofilia e encobrimento de pedofilia em ataques à ICAR. Este tema é demasiado sensível para que seja manipulado desta forma.
Mais, numa instituição com regras tão particulares como a que a ICAR tem, deveria ser alvo de uma profunda reflexão e serem tomadas medidas para evitar que tais episódios voltem a acontecer. Não se pode apagar os factos, e muito menos se deve silenciar estes actos, ou ignorar que tal tema assume inportância central na vida da ICAR. Por exemplo a forma como o Cardeal Policarpo reagiu à perguntas do jornalista foi no mínimo indigna de tal representante. Mais, numa altura em que é assumido pela própria ICAR que existe uma taxa de pedofilia nos seus membros, seria muito importante a própria ICAR fazer um levantamento dos casos que ocorreram em Portugal, dado a sua forte presença por cá.
Não se trata de todo de um ataque à ICAR ou aos seus representantes, mas sim tomar a decisão responsável para que não exista mais crimes como os que já ocorreram. E uma coisa eu sei, o tempo é um bem escasso, e enquanto a ICAR escolher gastar o seu tempo em defender-se de ataques imaginários, é tempo que não utiliza na prevenção de novos casos.
Utopiando...
Posto isto tenho de confessar que foi uma agradável surpresa ler esta história. Primeiro porque já construimos algumas das instituições que antigamente só existiam naquela ilha. Depois porque fiquei com a sensação que até prefiro viver na minha utopia actual.
É certo que ainda existe muito para construir um mundo mais utópico, mas como dizia o outro o caminho faz-se caminhando.
Não podia terminar sem dizer que me pareceu que os comunistas foram buscar muita, mas mesmo muita, inspiração a este livro. Só tenho pena que o autor não tenha revisitado a utopia pois assim poderia ter alertado os comunistas para alguns dos problemas que já estavam implicitos neste livro, o que evitaria muitos dos erros cometidos pelos mesmos.
Teste
Até parece uma conspiração pois são os de texto...
Vamos ver se é desta.
ok já consegui fazer o copy paste. pelo menos já não perco os textos...
Estou lixado...
Post resumido...
Deixo aqui um pequeno resumo do que tinha escrito e que se intitulava "sobrevivi!": basicamente queria agradecer a quem continua a ler os meus posts apesar de nos ultimos tempos tenham sido escassos e nem sempre com a melhor qualidade. Foi um ano muito dificil para mim, no entanto sobrevivi e um pouco deste meu sucesso pessoal devo a vocês. Venho com forças redobradas para voltar a dinamizar este espaço. A vocês o meu sincero obrigado.
Agora julgo que vou acabar de ler uma "utopia" para ter algo que escrever amanhã...
Telescrevendo
Proibido sonhar!
Não entendo porque é que no espaço publico se discute temas tão cinzentos e antiquados como a divida publica, a eficiência, a produtividade e outros temas que rimando com criatividade, de criativos já não lhes resta nada!
Ultimamente anda tudo “salazarento”, a censura volta a ser moda nos partidos, e este ano quase que apetece dizer que só dá Futebol e Fátima, sendo que o Fado é o nosso dia-a-dia. Voltámos a contar tostões, e as nossas abastadas elites a dizer que assim “é que é bom”, uma vida de sacrifício para nada ter. Substituiu-se o copo de vinho pelo chá de Aloé, mas a essência permanece igual.
Quero ouvir falar de outros temas, de outros sonhos, quero imaginar que daqui a 10 anos já não existirá problema de petróleo pois já ninguém utiliza petróleo. Que as já ninguém trabalha, mas sim tem actividades. Em que os hobbies são o trabalho e o trabalho um hobbie. Que já não nos vamos importar por nascer no interior ou no litoral, numa família abastada ou mais humilde, pois as oportunidades serão na sua essência iguais para todos.
Quero conversar e ter como tema de debate o quão mais rápido estão as viagens e como se tornou fácil ir a qualquer ponto do globo, quase que instantaneamente. Quero imaginar um futuro onde a poluição deixou de ser problema e o nosso desperdício já não existe, funcionando tudo numa harmonia e sem desgaste no meio ambiente.
Quero encontrar novos paradigmas, novas formas de pensar, dar utilidade ao que já foi feito e acreditar que muito ainda está por ser feito mas perfeitamente alcançável.
Raios, onde é que saiu o decreto-lei que nos proibiu de uma vez por todas de sonhar?
No-mad: Reflexões
E existem aqueles desejos que são o oposto destes. Desejos que estão sempre presentes, mas que pelo nosso contexto, ou força do dia-a-dia, estão dormentes, apenas presentes no nosso subconsciente. No entanto, quando por algum motivo algo desperta em ti esse desejo, o teu consciente acorda para essa realidade.
Viajar é para mim um desses desejos. Não sei explicar os meus impulsos nomádicos. Talvez não tenham explicação. Talvez sejam a herança genética de um antepassado longínquo. No entanto sei que o tenho, esse desejo difícil de explicar, de partir, sem um destino definido a não ser o do caminho a percorrer.
E depois, penso na minha vida, penso na era actual que vivemos. Eu sei que no meio desta crise, no meio desta incerteza toda, tomar tal opção é no mínimo surreal. E o desejo retorna então ao subconsciente, adormecido, à espera de uma oportunidade para voltar a aparecer. Esse não se preocupa com a racionalidade ou irracionalidade, apenas existe sem mais nenhum propósito do que o de ser satisfeito.
E isso faz-me reflectir sobre tudo à minha volta e pensar que, apesar de todas as explicações, as crises que vivemos não passam de períodos de ajustamentos internos entre o que pretendemos e o que fazemos. No fundo estas crises poderão apenas ser um período de reflexão entre o que fizemos até aí e o que realmente queremos fazer desse momento em diante…
Distrito 9
Para além da acção e ficção cientifica (diria mesmo muito além) saímos deste filme com a sensação que existem muitos distritos 9 por este mundo fora, ou mesmo aqui em Portugal. Com barreiras invisíveis mas igualmente intransponíveis. Mundos diferentes que coabitando a metros de distância são realidades longinquas. Tão distantes como mundos alienigenas.
É esse o condão deste filme, a surpresa do mesmo, o de falando de algo que não existe, demonstrar-nos o que existe e é bem real!
Orgulhosamente Estúpido!
Escrensar...
Muito Obrigado!
Discurso Directo: L-O-B-O
Obrigado por teres aceite o meu pedido. Eu não tenho muita experiência a efectuar entrevistas, por isso espero que gostes das perguntas.
Ora essa, eu é que agradeço. Obrigado pelo teu interesse. Talvez o melhor seja mantermos um tom aberto e fluido... Eu ,de qualquer modo, prefiro assim. O estilo de entrevista à “teste americano” não me agrada. Costumo dizer não a entrevistadores que não têm nenhum interesse em mim nem no meu trabalho, mas só em encher 1/8 de página num jornal. Esse tipo de formato não beneficia ninguém. Mando-os sempre de volta para os press-releases, pois as respostas às trivialidades que me querem perguntar estão com frequência lá... Entrevistas bem preparadas ou em que o artista se pode expandir desempenham um papel importante, mesmo que seja modesto, para a compreensão do que o artista tem a dizer sobre a sua arte e a sua visão do mundo. Creio que o público leitor beneficia mais com esse tipo de formato.
Vamos lá ver, então, aonde é que esta nossa primeira entrevista nos leva. :)
1. Bem esta não é bem uma pergunta, mas é algo que peço sempre que faço uma entrevista. Neste caso gostaria que me descrevesses um pouco quem tu és e o teu percurso.
L-O-B-O é o meu nome artístico e nome da minha actual estrutura de produção. João Nuno Barras e Lobo o meu nome de baptismo.
Lisboeta-alentejano, luso-escandinavo, 39 anos, coreógrafo, encenador, video-artista, ainda performer, radicado na Dinamarca há 15 anos onde continuei os meus estudos artísticos e me estabeleci profissionalmente.
Vivo actualmente com o meu parceiro Henrik Poulsen e 2 crianças no sul da Dinamarca na cidade de Nakskov na ilha de Lolland.
O meu interesse pelas artes performativas surgiu cedo. Comecei a dançar influenciado pela série Fame. Com 13 anos, comecei na ‘dança-jazz’ -tal como todos os adolescentes no início dos anos 80. Com 15 anos, fui admitido no Conservatório Nacional de Dança de Lisboa na turma especial de rapazes. Aqui fui iniciado às artes e dança clássicas, ballet e dança moderna (técnicas Graham e Cunningham). Ao mesmo tempo, envolvi-me com teatro em Almada -no GIC do Pragal-, e pela mão da Maria Santos (mais tarde deputada dos Verdes), a paixão desenvolver-se-ia. Comecei também a dedicar-me algo pobremente a algum activismo político juvenil neste periodo, criando raízes mais sólidas à esquerda do espectro político, um percurso e posicionamentos talvez naturais para quem, como eu, faz parte da 2ª geração urbana de jovens resultante do êxodo rural nos anos 60 da classe trabalhadora alentejana para a capital.
Alguns anos após ter iniciado esses estudos clássicos, exausto do estilo escolástico do Conservatório de Dança de então, de muitas palmadas nas nádegas e gritos de professores psicopatas caquéticos da ‘velha-escola’, de crises de identidade profundas e inícios de um certo comportamento anoréxico por causa do sonho de dançar, verificaria que o meu desenvolvimento teria de continuar noutro lugar. Tentei então continuar a minha formação artística em duas das novas escolas independentes/alternativas que começaram a surgir em Lisboa no início dos anos 90, e complementá-la com formação académica na universidade.
Aprofundei e expandi intensamente os meus conhecimentos técnicos como actor e performer no I.F.I.C.T (Instituto de Formação Investigação e Criação Teatral) –onde, além de algum teatro clássico, tive essencialmente contacto com diversas técnicas de teatro físico, especialmente as inspiradas em Antonin Artaud e Jerzy Grotowski- durante 20 intensos meses, e, logo a seguir, no Fórum Dança –aqui onde, na realidade, se encontrariam as sementes fundamentais que solidificariam o artista em que me tornei.
No Fórum Dança, a transdisciplinaridade total das matérias e técnicas artísticas, a democratização total dos processos criativos de composição tanto como performer e como coreógrafo, a teoria (actualizada!) da arte, dança-teatro, música experimental, bibliografias actualizadas, performance, artes-plásticas, video-arte, video-dança, professores e workshops com talvez a elite artística nacional e internacional mais talentosa e progressista da época em Portugal (Gil Mendo, Vera Mantero, Madalena Victorino, António Emiliano, João Fiadeiro, André Lepecki, Meg Stuart, Ann Papoulis, entre muitos outros) tiveram, não estranhamente, um efeito explosivo em mim, tornando-se, sem dúvida, nos 22-24 meses mais importantes de todo o meu percurso formativo. A esses meses devo quase tudo o que sou e acredito hoje... Comum a estes dois períodos formativos nas duas escolas seria sempre uma continuada àvida absorção de tudo o que era novo e estimulante por mais estranho e arrojado que fosse. As programações extraordinárias das primeiras edições dos Encontros Acarte na Gulbenkian, tiveram também um papel absolutamente fundamental na minha formação como artista e como indivíduo.
Simultaneamente com todos estes afazeres, coisas que me fascinavam e sonhos maiores que a minha capacidade de ver, ouvir e respirar e outras distracções –como a minha identidade sexual em galopante e desorientado progresso-, fui tentando procurar e encontrar sentidos para uma sensibilidade artística ainda em bruto que não cabia em si. Ao mesmo tempo que ia coordenando precariamente os meus estudos de Antropologia na Universidade Nova de Lisboa com uma actividade como performer e administrador/produtor do grupo de performance OLHO (que nasceria parcialmente do GIC de Almada e de novos elementos convidados), do qual seria também co-fundador em, salvo erro, 1992. A minha actividade diária era de tal forma héctica, que o sucesso estrondoso e inesperado da performance “EL (Levando-o Aos Ombros Em Passo De Marcha Sincopada Ao Quarto Tempo)”, que trouxe ao encenador João Garcia Miguel e ao colectivo OLHO reputação como os La Fura Dels Baus portugueses, passou-me ao lado, apesar de eu estar activamente e profundamente envolvido em tudo... Já aqui, começara claramente a notar um inevitável overload, que me criava uma sensação ininterrupta de que só estaria bem algures onde não podia estar... Onde, precisamente, também não sabia... Só de uma coisa tinha a certeza: só o céu poderia ser o limite, o Pathos total e absoluto, nada menos que isso, e, para tal, nada melhor que sair de Portugal para absorver directamente das fontes de experimentação em performance e dança e dos artistas europeus com quem criara profundas afinidades estéticas e de gosto, que tanto me fascinavam e faziam sonhar.
2. Mas como surgiu a Dinamarca na tua vida?
Apesar do meu entusiasmo inegável por muitos dos criadores da Nova Dança e Performance portugueses, a minha cegueira era total. Sucumbi à velha mentalidade portuguesa de que ‘lá fora é que era bom’ –uma mentalidade que era vulgar na minha família. A minha ideia de “futuro” estava profundamente ligada aos países “mais desenvolvidos”.
Enquanto permaneci em Lisboa, sentia profundamente uma violenta urgência de sair –o lema punk “No Future” era algo de obcessivo na minha mente- e não pude deixar de pensar que só seria ‘alguém’ um dia se tivesse um percurso formativo e profissional fora de Portugal.
Em Fevereiro de 1991, o Acarte apresentaria um encontro de teatro, dança e performance nórdicos onde se apresentou uma imagem exageradamente positiva da fruição e formação de artes performativas nestes países, particularmente na Dinamarca, que eu viria a interpretar como semelhante, senão mesmo superior, às da Holanda e Bélgica e de outros países europeus... Foi aqui, de facto, que a Dinamarca se apresentaria como um destino possível para a continuação dos meus estudos e, eventualmente, da minha vida profissional.
Após várias tentativas, conseguiria, em 1994, uma bolsa de estudo de 3 anos da Fundação Calouste Gulbenkian para tirar um bacharelato em teatro-físico na School Of Stage Arts em Vordingborg na Dinamarca.
Apesar de todos os problemas pedagógicos, económicos e, por sua vez, curriculares que esta formação na altura teve, ela veio inegavelmente permitir-me criar um sentido de ordem na excitante amálgama de impressões, saber teórico e técnico e experiências performativas obtidas nos anos anteriores, e em toda a inquietude que me ia na alma...
Iniciei os meus estudos na Dinamarca em Setembro de 1994. Curiosamente, penso até que nesse mesmo mês, o OLHO experienciaria o seu definitivo breakthrough com a reposição de outra fantástica criação, a performance “Humanauta” de João Garcia Miguel -com as impressionantes e inesquecíveis estruturas cenográficas móveis de Eric da Costa, evento que definitivamente posicionaria o OLHO como a vanguarda das artes performativas em Portugal até à sua dissolução voluntária no início deste século.
E assim foi... De repente abri os olhos e aterrei aqui, no norte da Europa, fugitivo: de mim próprio, de Portugal, da mentalidade pós-Estado Novo miserabilista e pós-revolucionária, da saudade, do fado, das cunhas, da falta de dinheiro, da falta de perspectivas, da corrupção política, da incompetência, da falta de disciplina, de nightclubbing e sexo sem fim com os dois sexos, do país de todos os atrasos, das minhas raízes de classe-operária alentejana, dos portugueses, dos charros e da erva dos outros, do meu pai, e de mim próprio... às 13 horas e 21 minutos de 09 de Setembro de 1994.
Imediatamente, logo que cheguei, fez tudo mais sentido. Um novo sossego começaria a tomar conta de mim. A minha bagagem estava, claramente, cheia de sonhos e de energia criativa explosiva a que tinha de dar vazão, mas era também uma bagagem a necessitar de exílio, emocional e artístico... E também, ainda, de orientação, necessidade de reflexão, consolidação da minha identidade e do meu querer.
Tudo isto só se tornaria claro para mim, anos depois...
Após o Conservatório, entre 1989 e 1994, a minha actividade tinha sido extraordinariamente riquíssima e intensa na sua disparidade de actividades, escolas, pessoas e experiências, e na falta de capacidade de arrumar tudo e dar-lhe algum sentido. Lembro-me de uma exaltante sensação de sufoco e de pânico percorrendo todo esse período assustador e excitante ao mesmo tempo, querendo ser amado, aprender incessantemente, desejando incontrolavelmente também ser apreciado pelo meu talento em bruto... Absorvi tudo, especialmente ao ser exposto a novas formas, novos seres, identidades e pensamentos artísticos, como uma esponja, sem filtros, sem defesas... Sexo e arte também: -embriagadamente, avidamente, secretamente e demasiadamente. Sempre sentindo-me como um eterno outsider, corria, porém, incansavelmente no vazio, e nunca ninguém me soube ou pôde dizer claramente como parar e reflectir...
Houve uma orientadora do Fórum Dança (que sempre adorei e respeitei), que se envolveu um pouco –mal sabendo o que me ia na alma e no corpo- e que quase o conseguiu fazer... Mas o rodopio interno das minhas emoções era tal, que a traí na sua confiança em mim e a magoei sem querer... Ela, claro está, desistiu marcante e rapidamente de mim... Apesar da sua decisão ter sido certa e a chicotada psicológica resultante desse facto ter sido fatalmente eficaz –pois nunca a esquecerei, ela não devia ter desistido... Hoje sei o indiscutível valor que um valente puxão de orelhas poderia ter tido num certo rapaz de 23 anos...
A minha frequência académica na Universidade tinha, entretanto, criado em mim a necessidade de me especializar em Antropologia do Teatro. Mas no deserto de perspectivas que a aridez da Faculdade de Ciências Socias e Humanas da Universidade Nova de Lisboa da altura oferecia, rapidamente me apercebi que nunca conseguiria obter nenhum tipo de orientação, nem sequer mentores de longe interessados...
Daí que o meu interesse pela actividade de Eugenio Barba, do Odin Teatret e da University for Theatre Anthropology em Holstebro me parecesse, assim, compatível tanto com as minhas ambições artísticas e académicas da altura como com o meu sonho juvenil de viver na Escandinávia. Foi a primeira vez que a Dinamarca se tornou num destino concreto... Mas, em conversa com a actriz Roberta Carreri do Odin Teatret em Lisboa em 1991, fiquei a saber que essa ‘universidade’ se dedicava somente à realização de workshops 2 vezes por ano em diferentes partes do mundo e que não tinha um programa de formação académica na área. Funcionava só como um centro de encontro, pesquisa e debate... Cedo verificaria que também não dava prioridade a toda a vanguarda das tendências da história contemporânea das artes performativas e da dança do final do séc. XX na América e na Europa, às quais tinha sido introduzido no IFICT e, essencialmente, no Fórum Dança. De universidade só tinha o nome... Ainda em 1991, meses depois, tomaria contacto com a companhia dinamarquesa Teatret Cantabile 2 e a peça “Krigens Kvinder/Dances of Patience and Desolation” –que, na altura, me deslumbrou. Um workshop de 3 dias no Festival de Teatro de Almada seria inesperadamente decisivo para a minha admissão na School of Stage Arts, gerida pela companhia.
E assim vim...
Em 1994, pus o estilo de vida urbano totalmente de lado dando lugar a sensivelmente três anos de intensa disciplina artística diária no romântico bucolismo de Vordingborg (sul da Zelândia), até os meus estudos se completarem. Aulas, ensaios, arte, música, livros e ar puro... Mais nada do que disciplina total e trabalho artístico árduo –muito deste trabalho solitário-, na ordem das 10-16 horas diárias de actividade. Ao mesmo tempo, na School Of Stage Arts, abrir-me-ia mais a outras correntes de teatro-físico, Jacques Lecoq, Dário Fo, Peter Brook, Eugénio Barba/Nicola Savarese, Augusto Boal, Samuel Becket, Bertold Brecht, etc. Usufruiria de uma tenaz introdução de mais de 3 meses ao Butoh japonês com Minako Seki e também descobriria com Paolo Nanni a sobriedade e riqueza do timing das encenações cinematográficas da obra de Jacques Tati, particularmente da riqueza das acções coreografadas de ‘Playtime’...
Timing, ritmo, disciplina árdua, resistência, persistência, precisão, sobriedade e inteligência foram claramente absorvidos por mim como valores essenciais neste escola. Memórias gratas e preciosas que serão para sempre importantes aspectos da minha identidade como performer e criador. Apesar dos problemas que referi há pouco, os meus anos em Vordingborg, foram uma experiência extrememamente poderosa e enriquecedora.
Apaixonei-me também por uma colega sueca, uma relação amorosa de 3 anos que se revelaria determinantemente como o último acto da minha bissexualidade em transição.
No entanto, além dos deveres curriculares, consolidaria e expanderia, na solidão do meu quarto, (e sempre que possível na sala de vídeo da escola noites a fio até de madrugada), as sementes do Fórum Dança: Pina Baush, Bob Wilson, Jan Fabre, Laurie Anderson, John Cage, Marina Abramovic, assim como os expoentes da nova-dança teatral europeia desse periodo, Lloyd Newson e os DV8, Wim Wandekeybus, a Needcompany, Anne-Therèse de Keersmaker, Meg Stuart, as vanguardas americanas em arte e dança de Rauschenberg e Warhol a Steve Paxton e Twyla Tharp, ainda Reza Abdoh, Edith Clever & Hans Jürgen Syberberg, Bill Viola, Heiner Goebbels, Robert Lepage, Wooster Group –entre muitos outros- como valores absolutamente indiscutíveis.
No cinema, seriam a volatilidade das poéticas e a visualidade das obras de, entre outros, Peter Greenaway, Derek Jarman, David Lynch, David Cronenberg, Orson Welles, Andrei Tarkovski, Sergei Eisenstein, Fritz Lang, F.W Murnau, Werner Herzog, Stanley Kubrick, Lars Von Trier, que me continuariam a tirar o sono com frequência...
Numa conferência em Copenhaga –não me lembro qual, há 10 anos atrás, ouvi Trevor Davies (o então Secretário-Geral de K96 –Copenhaga Capital da Cultura) dizer que ninguém tem razões claras para vir para a Dinamarca, que é sempre uma necessidade difusa de exílio que traz artistas estrangeiros para aqui, pois a Dinamarca não era nenhuma Meca das artes cénicas, apesar de os meios financeiros abundarem. Quem quisesse, que se iludisse...!
Pela primeira vez, nesta conferência, percebi finalmente parte da minha razão de ser no norte da Europa... E de como me tinha iludido meses a fio em Lisboa -e também enquanto estudante em Vordingborg, que a Dinamarca pertencia a um centro nevrálgico de actividade e correntes artísticas tal como a Holanda e a Bélgica nos anos 80 e 90 o foram –e ainda o são. Não concorri a nenhuma escola nestes países uma vez que todos os exílios são fugas, e eu precisar de fugir de Portugal, da nossa mentalidade, dos portugueses. E havia vários portugueses nestas escolas e também comunidades de emigrantes portugueses nestes países... Na Dinamarca, não havia... Acreditei também que o meu fascínio de adolescente por Valhalla, Odin e Thor seriam suficientes, que o facto de romanticamente sempre me ter sentido mais nórdico do que latino/sul-europeu seriam suficientes -curiosamente, desde a minha chegada à Dinamarca, que nunca me senti nem emigrante, nem estrangeiro. Apesar da sensação pessoal/privada de exílio, muito rapidamente me identifiquei com a mentalidade dinamarquesa/nórdica e rapidamente também aprendi esta língua difícil sem esforço. Foi tudo muito natural. A minha integração neste país não se confrontou com problemas de maior..
Esta foi a outra parte da razão porque a Dinamarca aconteceu. Um eterno fascínio romântico pelas culturas do norte –pelo frio, pelo escuro, pela neve- tornado convicção de uma certa pertença espiritual, um dia reforçada por uma amiga sueca (que hoje é padre), que, reagindo ao meu esgar engasgado pela beleza deslumbrante da província de Norra-Dallarna no centro-norte da Suécia em pleno Inverno de 1997, e enquanto andávamos por um lago gelado numa tarde de Dezembro com 16 graus negativos, me diz, sorrindo jocosamente, que é possível que eu seja a reencarnação de um viking que sobreviveu aos contra-ataques dos mouros que expulsariam os vikings de Lisboa. Um viking abandonado aí em Lisboa na Alta Idade Média, que agora está finalmente a tentar encontrar o seu caminho de volta para casa aqui no norte através de mim.
Ainda hoje, não posso deixar de sorrir ao lembrar-me deste comentário... Mas, apesar do meu ateísmo convicto e falta de prácticas espirituais, encontro nas notas ou divagações que tenho hoje em quase todos os projectos que realizei desde 1998, e em quase todos os projectos futuros desta nova fase da minha actividade criativa, pontos recorrentes dum desejo de encontro com a cultura, história e identidade nórdicas.
Após 15 anos de permanência aqui, e sem perder de vista outro tipo de preocupações, que o desejo da ‘navegação’ para criar esse encontro tem sido, e é cada vez mais, um facto indiscutível no meu trabalho artístico.
Daí também, precisamente, o logo de L-O-B-O ser, hoje em dia, a ancestral rosa-dos-ventos viking, um Vegvisir.
3. Estive a ler um pouco sobre os teus trabalhos. Qual é o que considerarias o traço comum a eles?
Solidão, talvez... Mas não a solidão depressiva, antes a solidão reflexiva, reactiva. O momento de reunir forças e voltar ao de cima.
Os meus trabalhos são bastante dinâmicos –há quem diga mesmo agressivos, por isso... Mesmo os mais lentos como “ØM [Sore]”, contêm sempre um elemento de risco em termos emocionais, estéticos e físicos para mim e/ou para os meus performers... E para o público também. Se as audiências ficarem emocionalmente indiferentes e não se envolverem, considero com frequência o meu projecto incompleto.
Além disso, eu poderia talvez caracterizar a maioria das minhas peças como coreógrafo, encenador e vídeo-artista como sendo bem apoiadas em investigações inspiradas nos processos de trabalho de campo académicos sócio/humanísticos, através do contacto com determinados grupos na sociedade, de entrevistas, etc...
Nem todos os meus trabalhos são realizados exclusivamente assim. “unCUT” foi talvez a peça em que essa foi a premissa base absoluta. A esteticização desta primeira fase de trabalho conduz-me sempre a um desejo de interdisciplinaridade (vídeo-arte, texto, dança, artes plásticas, etc), onde crio figuras fortes e solitárias e conceitos cénicos e universos visuais fortemente expressivos para elas e para o caleidoscópio de situações simbólicas e emoções que atravessam –que posso retratar de forma mais ou menos abstracta consoante a peça.
“ØM [Sore]”, por exemplo, vive de uma intensidade de carácter implosivo, enquanto que “Lobotomi”(2007) –o meu mais recente trabalho para cena- foi caracterizado pelo público e pela crítica como deixando os espectadores em “Inabitual estupefacção!” e, ainda, como sendo “Arrepiante na forma como provoca a nossa massa cinzenta!”.
Devo ainda acrescentar que algo a que retorno sempre em quase todos os meus trabalhos são as temáticas ligadas a género e identidade sexual –particularmente, masculinidade(s)- assim como temáticas mais voltadas para as relações entre indivíduos, instituições, tecnologia, arte e sociedade.
4. Numa parte do teu site está dito que o teu trabalho ou é ignorado ou é um desafio aos sentidos. Na tua opinião, qual será o motivo para tanta diferença de opinião?
A crítica na imprensa é um mal necessário. Os públicos novos não se tornam assíduos se não lerem que um determinado artista e a sua obra está em exibição, ou se não ouvem que se escreveu bem ou mal no jornal X ou Y, ou que se diz que se disse... Mas há sempre um ou outro crítico que tem a decência de tentar. Alguns têm escrito bem.
As diferenças de opinião relativamente às minhas obras devem, talvez, residir em dois factores. O primeiro é cultural –o meu trabalho (mesmo as peças mais abstractas) tem, talvez de uma forma geral, um carácter formal claramente mais directo, um temperamento mais sul-europeu, confrontativo e menos esotérico e/ou humorístico do que o da maior parte dos meus colegas nórdicos (talvez daí o meu maior sucesso até à data ter sido a minha peça de 2001 “Saudade [nada#2]” sobre Carlos Paredes, a mais clássica que fiz até à data e que recebeu um prémio coreográfico dinamarquês. O outro factor é o facto de eu não gostar de fazer cedências e de tentar o mais possível ser consequente e defender a integridade de tudo o que faço, mesmo se o material é difícil. As componentes de visualidade e sonoridade das minhas peças são sempre extremamente elaboradas.
Paradoxalmente, num país como este, o dinheiro é sempre pouco, e as oportunidades para criar condicões de trabalho e dignidade defensáveis para mim e para os meus colaboradores, para a produção independente em geral, têm-se reduzido nestes ultimos execráveis 7-8 anos de “Kulturkamp/Guerra-Cultural’’ do regime liberal dos partidos de direita conservadora Venstre/Konservativ sustentados, na sua maioria parlamentar relativa, pelo partido xenófobo Dansk Folkeparti, anos em que se assistiram aos cortes mais brutais nos orçamentos da cultura de que há memória. A dança e toda a criação independente foram imediatamente as primeiras vítimas, o teatro a seguir, o ensino artístico alternativo desapareceu a nível nacional, exceptuando talvez a minha escola, a School of Stage Arts.
Um exemplo concreto do actual estado das coisas é o facto de há cerca de 3 meses atrás se ter descoberto que, por causa da actual crise financeira, o governo, juntamente com o seu partido de suporte, ter decidido, unilateralmente e sem consultar ninguém, financiar uma redução nos impostos através da transferência de verbas atribuídas para a cultura e para os teatros e companhias deste pais. Estes cortes foram uma surpresa até para a actual Ministra da Cultura Carina Christensen –que, aparentemente, não sabia de nenhum acordo. Ou seja, a decisão foi tomada à revelia e ninguém pôde tomar posição sobre esta questão. Neste momento, a situação é de tal forma crítica que não me parece haver nem objectivos, nem dedicação, nem liberdade na política cultural deste país, sintomático de um desinteresse geral tanto dos responsáveis do estado como da oposição. Como se ambas as partes estivessem em acordo total relativamente à naturalidade de actos desta irresponsabilidade... O escândalo faz correr tinta na imprensa, claro está... É inadmissível.
Apesar disso, medos continuei e continuo, a ter poucos ou nenhuns: - isso pode ser considerado como um desafio estimulante por uns ou uma provocação desnecessária e punível por outros. Coreográfo, enceno e filmo o que a composição da obra exige. O resto não me importa... Cada nova obra tem de viver com dignidade e integridade totais e não de sobreviver coxeando à espera das condescendências e alvíssaras deste ou daquele crítico ou político, desta ou daquela conjuntura política.
Os colegas e o público que têm alguma afinidade com a minha obra respeitam-me por isso, penso...
A arte permanece, é essencial à vida. Os críticos e os políticos são, felizmente, efémeros, substituíveis.
Melhores tempos virão...
5. Num dos teus últimos projectos “unCUT” (2008) abordas o tema do problema de géneros. Da tua pesquisa, que, se não estou em erro, passou por Copenhaga, Estocolmo, Atenas, Gotemburgo, Bergen e Oslo, qual é a diferença de reacção a este problema?
“unCUT”(2008) é um produto derivado do projecto “THE CUT” -que me levou 5 anos a fazer- apresentado como uma performance em Copenhaga e como uma conferência/performance na Universidade George Mason na Virginia do Norte perto de Washington em 2003. Hoje, em 2010, é uma instalação de vídeo-arte sobre identidade, género e masculinidades. A única peça distintivamente Queer que fiz até hoje.
Os países escandinavos são muito uniformes no que respeita a questões de género e identidade. O debate sobre estas questões é um dado adquirido, não é problemático, apela-se sempre aos valores da tolerância, aceitação e abertura de espírito, valores porque estas sociedades são conhecidas em todo o mundo. Os homossexuais aqui são dos mais privilegiados em todo o mundo. A liberdade de expressão e de união é total (o casamento, como o dos heterossexuais, não existe ainda, só as uniões de facto -tenho acompanhado pela internet os excelentes acesos debates nos media sobre os direitos dos homossexuais portugueses).
O fenómeno do crescimento da ocorrência de hate-crimes aqui é perturbante, mas esses crimes são essencialmente cometidos por jovens a formar a sua identidade com outro background étnico, ou então adultos ignorantes ou sem escrúpulos de outras origens étnicas –normalmente árabes, africanos, eventualmente leste-europeus. Normalmente os perpetradores não são de origem étnico-nórdica.
No entanto, e voltando à questão dos géneros, verifiquei que, na verdade, as coisas não se passavam inteiramente da mesma forma como com os homossexuais quando se tratava dos transsexuais (prefiro, de facto, o termo transgéneros). Nós, no sul da Europa, temo-nos habituado um pouco a ter a tendência de considerar a Escandinávia uma perfeita quimera de virtudes imaculadas. Mas há, de facto, ainda muita coisa para melhorar. Há muito por fazer relativamente ao estigma vivido pelas transindentidades.
O meu trabalho de campo final para a instalação “unCUT” foi realizado há cerca de 6-7 anos atrás. Entretanto, muitas coisas se alteraram para melhor. Estou certo de que nas novas entrevistas que farei a partir de Janeiro para a continuação do processo de “unCUT” até 2011, hoje em dia muitos transgéneros se expressarão de forma diferente do que fizeram então. Pelo menos na Dinamarca parecem, finalmente, estar mais organizados e serem mais interventivos e visíveis do que nunca.
Algumas das situações legais relativamente aos seus direitos já não são tão caóticas como há 7 anos atrás, nomeadamente: a questão de melhor acesso à intervenção cirúrgica definitiva aqui na Dinamarca com ajuda parcial do Estado –para que os transgéneros não tenham de ir para a Tailândia e outros destinos obscuros e baratos arriscar a sua vida ou saúde e ficarem com um handicap físico crónico irreparável- ou ir a clínicas insuportavelmente caras no ocidente e sujeitarem-se a dificuldades económicas ad eternum; ou então ainda a questão aparentemente simples da lei da mudança de nome.
Este último aspecto tem sido uma luta de muitos anos para os transgéneros aqui, mas a lei foi finalmente alterada este ano. Já se pode ter um bilhete de identidade e passaporte com o nome do género escolhido após a cirurgia, e em Julho deste ano tornou-se legal a possibilidade de nos passaportes ser permitido colocar um X em vez de M ou F no caso da cirurgia ainda não ter sido efectuada e a Clínica Nacional de Sexologia já considerar esse indivíduo como transsexual/transgénero.
Há 6 anos atrás, verificaria que era na Noruega que graças ao trabalho político de muitos anos de dedicação de Tone Maria Hansen e Elsa Almås Esben Esther Pirelli Benestad que os transgéneros noruegueses no conjunto dos países nórdicos eram os que menos sofriam... A situação está, felizmente, a alterar-se lentamente aqui na Dinamarca.
Ultimamente não tenho acompanhado os desenvolvimentos mais recentes na Suécia, Finlândia e Islândia.
Em Atenas, onde comecei a escrever o projecto em 1998, fiz só entrevistas sobre masculinidade(s).
Por sua vez, os estudos da(s) masculinidade(s) nórdicas tem tido um desenvolvimento francamente interessante nos anos mais recentes. Há associações de académicos bastante dinâmicas e bem organizadas e mesmo muito debate. A NeMM, a Associação de Estudos sobre Homens e Masculinidades dinamarquesa, convidou a minha instalação “unCUT” a ser exibida na Universidade de Roskilde em Janeiro de 2009, no âmbito da 1a Conferência Nórdica de Masculinidades.
6. Qual é que achas que será o caminho para o género deixar de ser um problema?
Quando este apartheid do(s) género(s) e das sexualidades em que ainda vivemos e de que nunca falamos claramente começar a desaparecer, quando pusermos de parte a generalização e os estéreotipos relativamente a género, quando aceitarmos que é a biologia que dita as regras e não sentidos de moral categóricos. Quando ideologias retrógradas deixarem de ter influência no que deve ser a expressão sexual e de género de cada indivíduo. Quando aceitarmos que, na realidade, nós não deveríamos ser definidos pelos nossos genitais mas pela identidade de género que temos.
Seríamos definitivamente todos mais felizes se nos deixássemos de impor ‘coletes-de-força de género’ a seja quem fôr e nos decidissemos pela clara evidência de que estamos todos posicionados diferentemente (e também criativamente) num continuum espectral de género e de identidades sexuais.
Quando aceitarmos que para muitas mulheres e homens na nossa sociedade, ser homem ou mulher ou simplesmente um ser humano, ter um pénis ou uma vagina não é o essencial, e que o essencial e mais importante não é o que deve ser um direito humano rigorosamente absoluto à privacidade de cada um–o que está debaixo de umas saias ou dentro de umas calças-, mas a identidade que as pessoas sentem fervorosamente ser/ter, apesar das partidas que a biologia nos possa ter pregado. Que o essencial é uma pessoa ser socialmente e intelectualmente competente numa sociedade, na vivência e transmissão de valores essenciais de camaradagem, compreensão, liberdade, justiça, dignidade, tolerância, amor para com o seu semelhante, outros seres humanos.
Quando aceitarmos que género e sexualidade podem ser tão variáveis como as nossas impressões digitais e que o que na verdade todos somos é mutantes e transgéneros, então aí sim... Talvez aí comecemos a estar no caminho certo.
Se se introduzisse a palavra ‘gender’ no segundo artigo da Lei dos Direitos Humanos, seria excelente.
7. Na minha opinião poder-se-á definir o teu trabalho como uma tentativa (julgo que conseguida) de ultrapassar os limites. A minha dúvida é qual é o teu limite?
... e tentativa de criação ou retrato de situações limite e de indivíduos em situações limite, também...
Não sei qual é o meu limite. Quando crio, não sei quais são os meus limites. É em si também um trabalho de procura. As minhas peças têm também de me provocar, tenho de sentir que saem de mim. É assustador chegar a um sítio desconhecido sem norte em termos emocionais quando se compõe uma peça para filme ou cena, mas exaltante a procura do sentido intrínseco das coisas, procurar a pureza da verdade das emoções.
Na minha procura, muitos dos partos são sempre com alguma dor, pois costumo não saber de antemão que ia precisar de querer dizer ‘aquele-algo-verdadeiro’ que se encontrou durante o processo de criação/composição de uma nova peça. Não temo essa exposição, porém...
O coreógrafo Merce Cunningham disse uma vez que iria dançar até morrer, que mesmo se estivesse completamente paralisado físicamente e o movimento do seu dedo mindinho fosse a única coisa, a única dança, que ele pudesse apresentar em palco, que assim o faria. Eu sinto o mesmo...
No entanto, nem todas a minhas peças vivem deste estoicismo. Mas espero nunca saber os limites. Temo profundamente os estados de letargia, procuro não saber... E se der com eles, com os limites, espero sempre poder encontrar a ‘gear’ e a energia certas para superar a fasquia desse limite e, assim, entrar de novo num estado de graça criativa em que sinta que tudo é possível... Assim como quando se diz a verdade em circunstâncias sociais que a suprimem. A maior parte das vezes é uma experiência libertadora, redentora, assustadora, por vezes! Creio que só assim se me não parará a ambição, livre, sem obstáculos, sem inibições, até morrer.
A verdade poética inigualável e inabalável da composição coreográfica/fílmica a que se chega é sempre o mais importante. Só assim sinto os actos de compor coreograficamente para cena e/ou a montagem dos meus filmes como autênticos e meus.
8. Actualmente estás a editar um novo trabalho, o "Sore". É sobre o quê?
O “ØM [Sore]” está terminado. Foi estreado em Copenhaga em Março de ’09. Agora está a ser exibido em festivais internacionais de vídeo-dança, nomeadamente no Brasil e Bélgica e, espero que em breve também, na Austrália, Estados Unidos e Nova Zelândia, África do Sul, Escócia, Finlândia e outros pontos da Europa. Se calhar também em breve em Portugal. Quem sabe...?
Este video-dança é uma filmagem da uma cena da minha peça coreográfica [ { ( " ... deaf - mute ... " ) } ] de 2000, na qual coreografei disruptivamente a bailarina e actriz-física Medde Vognsen nos limites da sua resistência física, quer de actividade quer de inactividade. O filme é a adaptacão da cena mais lenta da peça, a cena final.
Em “ØM [Sore]” procurei, através de ensaios intensos, criar coreograficamente uma materialização daquela zona interior em nós com a qual a maior parte do tempo nós não desejamos ter nenhum contacto. Uma zona indistinguível de verdade, a que chamei ‘surda-muda’, porque está debaixo de tantas camadas do nosso inconsciente, que se torna difícil comunicar com ela mesmo quando se quer entrar em diálogo com ‘ela’, ou ouvir o que ‘ela’ nos diz quando estamos mais vulneráveis.
O título desta peça fílmica, “ØM [Sore]”, deve-se entender como em ‘dorido’ ou ‘ferido’, como a dor ou ferida emocional que nos abre “perigosamente” um estado de espírito, um canal, uma via de contacto com essa zona.
Estas peças aconteceram porque entre 98-00 e entre 03-06 atravessei dois áridos períodos depressivos de exemplar intensidade. O primeiro que acabaria por potenciar uma fase de incessante criatividade em que produzi muitas peças novas para cena (dança e performance) e fui performer em peças de muitos colegas num espaço relativamente curto de tempo. O segundo período que foi mais profundo e dramático tendo-me paralisado quase totalmente durante 5 anos. De repente perderia, de forma aparentemente irreparável, o amor à minha profissão e deixaria de ver qual era o objectivo em fazer o que faço e a razão de ser de tudo... Foi absolutamente terrível, assustador, devastador... Além do mais, quando se é artista-cénico independente, numa sociedade profundamente estruturada sob o ponto de vista social e profissional na necessidade de permanente e incansável networking como a sociedade escandinava, parar, pode, de repente, significar o esquecimento total por parte dessas redes profissionais e sociais... Sim, mesmo socialmente, suspeito ser assim.
Ainda hoje, após 15 anos neste país, sinto que na Dinamarca tem de se merecer a amizade ou a relação de trabalho que se tem com alguém. Não é tão fluido e flexível como connosco latinos, talvez por esta ser uma cultura do frio, de interiores, talvez daí a necessidade de uma maior ‘selecção natural’... No entanto, existe um enorme sentido de pertença e de profunda lealdade entre as pessoas se a relação tiver funcionado. Gosto mesmo muito dos dinamarqueses.
Re-iniciar a minha actividade artística com a instalação “unCUT” no final de 2008 e, no início de 2009, finalmente concretizar “ØM [Sore]” na sua versão final, pareceu-me o mais certo para fechar claramente uma fase de 10 anos
como criador e uma determinada forma de criar. Em 2010/11 procurarei fazer sair um dvd com o resumo possível de toda a minha obra.
A arte-cénica, o palco, interessa-me muito ainda. E estou certo que muitos dos projectos futuros que tenho na gaveta com muitos colaboradores não tardarão a acontecer, decerto. Mas, por enquanto, nesta nova fase, estou mais interessado em fazer muitos filmes curtos e instalações low-budget. Nada de ambiciosas produções que me tirem o sono dias a fio e que me retirem do meu perfeito juízo. Agora vivo no campo, a 171km a sul de Copenhaga, com o meu parceiro Henrik, que amo profundamente e temos duas miúdas a entrar na adolescência à velocidade incontrolável da luz. De forma natural, os timings e as prioridades modificaram-se um pouco também. De forma natural aproximo-me da minha andropausa no conforto do meu pequeno estúdio caseiro, cheio de ideias, de projectos e de energia para os concretizar. Quero viver até aos 111 anos e olhar para o corpo do meu trabalho com um sentimento de ‘missão cumprida’...
Nos meus próximos trabalhos, desejo aprofundar ainda mais sob o ponto de vista humano o meu relacionamento com os meus colaboradores (habituais e novos), baseando-o em princípios de respeito, trabalho árduo, espaço de manobra criativa individual, disciplina, e amizade e lealdade à composição em que escolhemos colaborar juntos artisticamente. Uma filosofia mais ‘horizontal’ de trabalhar –em contraste com a ‘verticalidade’ cruel dos deadlines sucessivos do ‘showbusiness’, entendes...(?), o que necessariamente desacelerará a hiper-actividade dos processos criativos a que estava habituado em ambientes urbanos. Hiper-velocidade criativa para mim foi sempre contra-producente… É cada vez mais importante para mim a razão de ser das minhas obras.
Isso vai já começar a acontecer com as novas peças fílmicas que espero ter prontas entre este Outono e a próxima Primavera. “ÆTER [Ether]” e uma 2ª série de retratos-de-vidro-múrmuro "FACIAL(c)LIF(f)(t)", que são peças de charneira, entre fases criativas, mas que terão uma dinâmica e um carácter diferente das peças que actualmente tenho em circulação e das que comecarei a produzir em 2010.
O peça seguinte, o filme-de-dança, “NAKSKOVIT”, é uma peça de fundo um tudo nada mais ambiciosa (pela primeira vez captarei extensivamente dança em exteriores), uma curta-metragem de dança que será filmada na íntegra aqui na ilha de Lolland. Vai ser um processo fantástico de cerca de 16 meses, longo e calmo, on & off, com bailarinos e actores amigos dinamarqueses por quem tenho um profundo respeito e admiração tanto sob o ponto de vista humano como profissional!
9. Como é o teu trabalho visto na Dinamarca? E em Portugal?
Na Dinamarca, o meio da dança e teatro independente e performance é pequeno e relativamente isolado. Ninguém é conhecido a nível nacional, a não ser que se seja convidado para fazer parte do júri do X-Factor ou doutros programas de talentos. O mesmo deve acontecer um pouco por todo lado... Apesar disso, mesmo dentro do próprio millieu os nomes são muitos, duvido que mesmo públicos interessados e dedicados conheçam a maior parte dos artistas-cénicos experimentais/independentes activos em Copenhaga e Århus. Alguns destacam-se por um sucesso ou outro ou por uma endurance interminável de anos de actividade ou alguma visibilidade internacional.
Neste momento há também uma mudança de geração em curso. Desde que vivo aqui que sinto pela primeira vez que os novos nomes produzem já trabalho com bastante qualidade e que nomes da minha geração de artistas apelam já de forma extraordinária à excelência, permanente irreverência na experimentação como um valor fundamental e maturidade poderosíssimos. Poderia nomear na dança os coreógrafos Tina Tarpgaard da Recoil, Kasper Ravnhøj da Mute Comp., na performance e instalação teatral Signa Sørensen. Destacaria Erik Pold da Liminal.dk e, ainda Stuart Lynch que, com o seu recente espectáculo sobre Artaud, se tornou mais interessante que nunca. Annika B. Lewis que, com os seus jogos sobre género, é cada vez mais excitante. No teatro-físico Kristjàn Ingimarsson com um talento e carisma inegáveis… Ainda, na performance teatral, não posso mesmo deixar de mencionar Claus Beck-Nielsen e o seu extraordinário projecto multifacetado Das Beckwerk –e estou mesmo a deixar muitos de fora! Há muita criatividade mas pouca visibilidade e pouco público, especialmente para a dança.
Outros nomes mais firmados como os de, por exemplo, Lene Boel, Anders Christiansen, Palle Granhøj, Tim Rushton ou Kitt Johnson, Jakob Shocking/Holland House e Kirsten Delholm/Hotel Pro Forma (este últimos neste momento com uma fantástica ópera multimédia sobre Darwin com música da extraordinária banda de Electrónica sueca The Knife) continuam a dar que falar e a circular muito internacionalmente.
Desde que vivo aqui que a Dinamarca sempre me pareceu, de modo geral, indiferente à experimentação nas artes cénicas -tirando honrosas excepções-, apesar dos níveis de educação serem dos mais altos do mundo e os recursos financeiros estarem, para muitos, disponíveis. No entanto, não basta ter meios, ter o desenho de luz mais sofisticado, os designs-de-cena tecnologicamente mais avançados, o último grito em projectores de vídeo e 117 ecrãs a passar sequências de imagens ininterruptamente... Sempre me pareceu não haver muito para dizer, quero dizer, estados de urgência de comunicar absolutos, autênticos, gritos puros, esmagadores como os do Artaud... Após assistir a uma inúmera quantidade de trabalhos de muitos colegas anos e anos a fio, sempre senti um desalento expressável somente por “so fucking what!?”, tornando sempre presente na minha mente também uma passagem de Henry Miller que um dia escreveria que “Todos os dias chacinamos os nossos melhores impulsos...”
Moderação é uma excelente qualidade que os dinamarqueses têm como povo, mas não se deveria reflectir demasiadamente nas artes cénicas… Boa formação pedagógica, académica e artística sempre me pareceram não dever, não poder ser(!), sinónimo de castração de curiosidade, ímpeto e sentido provocacão e risco na arte-cénica em termos formais, estéticos e de conteúdo neste país, pelo contrário... Mas, provavelmente, até os artistas são indelevelmente afectados, mimados, apaziguados, domesticados por este sistema de segurança social, pelo conforto psicológico que esta “boa-sociedade” perfeccionista lhes traz... Mas, se assim for, é inaceitável.
Será que a existência de uma extensa classe média, com boa formação e níveis altíssimos de civismo –há poucos muito ricos e poucos muito pobres nesta sociedade-, terá de forçosamente ser sinonimo de gosto pela fruição da trivialidade e (tal como Le Corbusier escreveria em defesa da obra fílmica experimental de Maya Deren) gosto pela estupidificação gratuita do faz-de-conta/“the stupidity of make-believe”? Será que nos devemos contentar como artistas, como indivíduos, como sociedade só com isto? Deverá ser assim?...
Desde há uns anos a esta parte que surgiu também uma onda de teatro político com um carácter mais interventivo essencialmente pela erosão criada pelos anos Bush/Fogh Rasmussen e pela presença militar indesejada da Dinamarca nos conflitos do Iraque e do Afeganistão. Mas este é um país que tem uma tradição muito pesada de Revista Cómica Teatral, teatro comercial e Bournonville que rapidamente se encosta em formatos considerados mais acessíveis para as audiências… De modo que, nestes anos de crise, é agradável ver que se tem vindo finalmente a consolidar uma comunidade, uma nova geração de criadores genuinamente possuidores de uma impetuosidade singular desejando levar a arte-cénica e criação independente mais além, e marcar-se pela diferença, pela experimentação.
Desde que vivo aqui que movimentos disruptivos underground que abanassem as bases da ‘familien-Danmark’ têm sido quase inexistentes –exceptuando o burburinho criativo criado pela associacão trash-queer Dunst nos últimos 6-7 anos e agora também pela nova Warehouse 9. Uma nova vénue, Nye Tap Scene, está também a caminho com um projecto bastante prometedor.
Sente-se uma onda de nervosidade criativa e de desejo de novos desafios maior hoje em dia, na dança e no teatro independente dinamarqueses... Espero sinceramente que permaneça.
A não abundância de apoios para a produção independente, apesar dos fundos absolutamente astronómicos que se dão a certas produções e a certos artistas, e a tradicional falta de abertura e interesse de venues firmadas pelas novas correntes criativas e novos géneros, tem contribuido para que o público não saiba do que de absolutamente pulsante e novo se passa, e assim se interesse e exija continuidade e crescente qualidade.
Apesar da administração da dança e de outros projectos independentes que temos aqui ser muito profissional e competente, não é suficiente, pois a dominância brutal do entertainment mass-mediático, as campanhas de marketing caríssimas do mainstream e a americanizacão banalizadora e populista do gosto domina tudo de forma esmagadora!
Os musicais ou projectos de prestígio deste regime com orçamentos irresponsavelmente milionários abundam nas vénues mais conhecidas e os sacos de dinheiro que se poderiam ir usando para formação, educação e criação independente vão-se esvaziando... De uma forma geral muitos vão atrás das modas que atraem as massas tentando introduzir a linguagem do musical em todos os géneros na esperança de atrair mais público... Um erro... É deprimente e quase impossível competir com esta situação...
Ainda há falta de visionários: administradores, produtores, agentes com vontade de tomarem riscos e de se baterem por sonhos, gente que se queira atrever a acreditar e a produzir novas visões sem a velha lógica ‘mercantilista’, do ‘quickbuck’, do que dá dinheiro. Encontrar novas vias, novos públicos e novos mercados para a arte cénica independente (teatro, dança, performance) dinamarquesas é importantíssimo e devia ser uma prioridade absoluta nesta nação.
Ouço frequentemente o argumento de que a Dinamarca é uma nação pequena e daí ter a arte-cénica e o público que merece... É um disparate! Sim, somos 5,5 milhões de habitantes, e depois...?? Na Islândia são só 300.000 e o pulsar e irreverência cultural daquela nação envolvendo 90% da populacão é talvez dos mais exemplares em todo o mundo!
Esta mentalidade, este tradicional complexo de inferioridade cultural artificial nas argumentações produzido mesmo por algumas pessoas-chave do millieu, por causa de meras questões numéricas das dimensões da população e do território nacional, penso ser o primeiro problema a necessitar de resolução rápida. A Dinamarca é uma nação com artistas profundamente criativos e capazes, particularmente na área da produção independente. É extraordinário o nível que algumas produções têm, mesmo sem muitos meios. Há que potenciar isso e apostar alto, apostar que os públicos nos seguem e se manterão fiéis. De outra forma, o “brain-drain” de artistas dinamarqueses a radicar-se no exterior não irá terminar tão cedo... Existe neste momento uma sede de novo no público, em todas as gerações, e parece-me maior do que nunca.
Apesar da recente criação de intercâmbios com outros países e cidades-chave, tal como Nova Iorque ou Berlim, a sensação que ainda prevalence é a de uma incompreensiva insularidade, apesar de se estar geograficamente posicionado entre grandes centros nevrálgicos de criatividade europeias, e sentir que as mais inovadoras pontes culturais passam por cima de Copenhaga, entre Berlin e Londres, Londres e Bergen, Amsterdão e Helsínquia, Bruxelas e Oslo, etc…
Só recentemente com o aparecimento da De Uafhængige Scenekunstnere / The Danish Independent Artists Association é que o debate para a necessidade de alterar esta situação se acendeu com mais persistência, seriedade e sentido de estratégia. Os seus representantes parecem querer ser consequentes e têm felizmente bastante capacidade argumentativa e talento na criação de lobbies políticos de interesse. Alguns dos novos membros têm alguma visibilidade mediática por outras razões, pelo que vários políticos no governo e várias autarquias -entre as quais as de Copenhaga e Århus- começam lentamente a estar mais sensibilizados às problemáticas principais que afligem os artistas independentes aqui, essencialmente falta de vénues, falta de fundos e/ou garantia da continuidade de actividade artística. Estou confiante de que algo vai mudar em breve.
Um novo grupo de interesse surgiu recentemente também, Scenekunstnere Uden Scene / Artistas Cénicos Sem Cena... Algo já está a mudar.
Uma mudança urgente para o centro-esquerda nas próximas eleicões legislativas após quase 10 anos de hiperconservadorismo populista apoiado pela extrema-direita é urgente e traria decerto consigo novos estímulos.
A conferência ‘Creating Conditions’, realizada recentemente com convidados dinamarqueses e internacionais organizada pela Uafhængige Scenekunstnere (Associacão de Artistas Independentes), introduziu claramente um sinal de necessidade e vontade de mudança radical em 2 dias de debates e trocas de experiências que envolveram políticos, organizações, artistas, festivais escandinavos e europeus – enfim este assunto daria outra entrevista...
Orgulho-me de fazer parte deste novo movimento de artistas independentes dinamarqueses.
Há também o projecto Kedja que reúne com frequência artistas e responsáveis nórdicos/bálticos da dança que se continua a desenvolver e a solidificar.
No final do Verão de 2009, num enorme complexo de edifìcios que a Carlsberg está a abandonar, um centro gigante de dança com 9.500m2 – os Dansehallerne, o maior a nível nórdico-, com espaço para 2 salas para a venue Dansescenen e 1 companhia a Dansk Danseteater, para estruturas organizativas/administrativas diversas de outros grupos e companhias assim como para o Centro de Documentação da Dança dinamarquês, novos estúdios e salas de ensaio para a Dansens Hus, etc-, foi inaugurado em meados de Agosto culminando vários anos de intensa, notável e competente actividade de alguns dos responsáveis pelo sector da dança dinamarquês. A nova vénue Nye Tap Scene, também vai ter as suas instalações neste enorme complexo…
Vamos ver como se gere aquela nova grande casa da dança, se se geram novas vias/modelos que consigam atrair os públicos para o gigante Dansehallerne/Dance-Halls... O mesmo com Nye Tap Scene… Seria terrível se se tornassem ‘elefantes-brancos’...
Não só a dança mas também os inúmeros e excelentes(!) artistas cénicos independentes transdisciplinares que trabalham com dança e performance nas charneiras dos géneros e das estéticas beneficiariam muito com esse estímulo, se apoiados pela paixão de produtores visionários conscientes de que pesquisa artística nas artes performativas pode não funcionar –que os artistas podem falhar- que a arte cénica é essencialmente investigação de novos formatos de comunicação artística e não somente entretenimento trivial ligadas a instituições estabelecidas, fazendo disso a motivação que os faz trabalhar e querer tentar novos modelos de produção que fomentem a maior liberdade artística possível, novas visões artísticas, novas formas de encontrar e inspirar audiências!
Voltando à tua questão inicial: o meu trabalho não é, portanto, neste contexto, conhecido na ‘nação-cultural’-Dinamarca, mas é visto com respeito e consideração por colegas e público e levanta quase sempre algumas cordiais ‘trocas de impressões’, algum debate. Os críticos parecem ter mais dificuldade em perceber ‘what am I up to’, são extremamente conservadores :) estão certamente ofuscados pelo glitter de todos os musicais à deriva nesta cidade... Além do mais, devo acrescentar que a critica aqui encontra-se também em dificuldades conjunturais que se adivinham quase como uma tendência crónica: os jornais, ou retiraram o espaço de escrita sobre artes cénicas e a sua visibilidade, ou excluem totalmente a crítica das suas prioridades, devido a uma crise continuada no sector da imprensa escrita. Hoje em dia alguns dos mais importantes jornais de tiragem nacional não dão nenhuma prioridade às artes-cénicas o que é uma situação inaceitável, insustentável.
Posso-te dizer, porém, que uma das mais simpáticas afirmações que se escreveram sobre mim na imprensa dinamarquesa numa crítica de 1 ou 2 estrelas no jornal Politiken a propósito de uma das minhas obras há uns anos atrás foi a de que, apesar da minha disforme e inconstante procura de sentido na arte e na vida patente na minha obra, que eu seria talvez dos poucos coreógrafos a nível escandinavo que, com sentido de consequência, de obra para obra, me atrevia séria, destemida e intrepidamente a tentar encontrar novos caminhos para a coreografia como arte. Não é uma citação, e não sei se o afirmado efectivamente confere... Duvido, com toda a humildade... Há coreógrafos extraordinários nos países nórdicos –a Finlândia está por exemplo a viver um autêntico boom de criatividade e de altíssima qualidade...Mas, definitivamente, esta foi talvez das poucas vezes que algum crítico se deu tempo ou talvez tenha tentado perceber algo mais e ver mais além do que a mera superfície das coisas numa obra minha.
Lembro-me que em Portugal, um crítico do Público um dia escreveu que se contavam pelos dedos de uma mão –e ainda sobrariam dedos, os artistas cénicos que na altura teriam capacidade no nosso burgo para criar uma obra com a amplitude e a dimensão épica do meu solo-premiado “Brado –ou Mishima em Retratos de Vidro Múrmuro” em 1995/1997, um trabalho produzido pelo CENTA/Graça Passos, após uma residência solitária de 5 meses em Vila Velha de Ródão.
O tom aqui foi o mesmo, o do do crítico dinamarquês, quero dizer...
Só acredito quando forem mais a escrever do mesmo modo. E eles criarem um clube de fãs! ( lol )
Enfim... deixemo-nos disto...
O importante realmente é sempre o mais difícil: trabalhar, continuar sempre a trabalhar e a melhorar a sua linguagem, seguir o caminho que se tem de seguir com paciência, perseverança, sentido de consequência e, sempre que possível, pelas vias do inatingínvel, criando beleza –seja lá o que isso for... O resto, é o circo do costume... Não importa.
10. Como é Portugal visto da Dinamarca pelos teus "olhos"?
No entanto, penso que os dinamarqueses vêem Portugal com simpatia, sendo a percepção mais comum a de que é um país pobre da União Europeia com dificuldades económicas e políticos corruptos ou sem talento, mas onde a população é extremamente gentil e onde se podem fazer boas férias... Fico sempre surpreso pelo desconhecimento que há dos nossos excelentes vinhos, por exemplo. A Dinamarca é uma nação produtora e consumidora de cerveja. De modo geral, há muito pouca informação sobre Portugal nos media... Exceptuando quando o Cristiano Ronaldo faz uma travessura ou marca um golo... Ou então os nossos eternos fogos florestais...
Verifico que muitos dinamarqueses, ao terem experienciado Portugal e os portugueses, se referem a nós e ao nosso país com enorme respeito e admiração, que nos colocam acima de qualquer nação ou população europeia, e que apreciam o facto de sermos mais suaves e menos orgulhosos que os italianos, os espanhóis, os franceses e os gregos... Muitos retornam com bastante frequência, mais do que a outros destinos no sul da Europa.
Na verdade, apesar das diferenças culturais –particularmente na forma como se encara e dá valor ao ‘trabalho’, eu penso que os dinamarqueses e os portugueses têm em comum o facto de serem povos muito gentis, cordiais e sorridentes e terem um fundo de enorme bom senso. Talvez por isso voltem repetidamente...
O dinamarquês encara o trabalho de forma muito diferente do português: auto-estima e mais-valia aqui é baseada nos bons resultados, disciplina e competência. São traços claros da mentalidade... Em Portugal, a mentalidade geral é a de que quanto menos trabalharmos e mais cunhas metermos melhores pessoas somos e melhor subimos na consideração dos outros! Muitos dinamarqueses descrevem sorridentes este traço do nosso carácter como ‘o charme português’...
Eu não comento.
Reconheço que, quer há 15 anos como agora, a população portuguesa vive uma situação extremamente difícil... O tom dos debates parecem ser os mesmos. Presumo que os conteúdos das discussões também... Os assuntos parecem-me sempre irremediavelmente os mesmos...
Dominada pela tirania da incompetência, do clientelismo, da mediocridade, da repressão de traidores morais, estou convicto de que a população portuguesa se encontra num estado passivo-agressivo de depressão geral e desencanto notavelmente profundos. Quando se fala em trabalho, política, dinheiro, direitos e deveres, as pessoas falam de forma claramente agressiva mas como se não se importassem, ou então de forma contida, magoada e amarga, como se fossem indiferentes ou se se quisessem conformar, os olhos baixam, as cabeças abanam, muda-se de assunto porque eu estou de visita... Estes são detalhes sobre os quais os meus olhos não vêem os dinamarqueses a reflectir, naturalmente...
Aqueles que conheço e que estão mais informados sobre o nosso país reagem com enorme indignação a este estado podre vitalício de ser das coisas na nossa república lusitana, e ao nosso tradicional conformismo...
De qualquer forma, um estado de coisas que nenhum dinamarquês, de modo nenhum, permitiria se tornasse ‘status quo’ na Dinamarca.
Após uma visita, volto quase sempre triste. Por isso não consigo ficar mais de 10 dias de cada vez.
A Dinamarca não é nenhum paraíso, longe disso –há muita solidão, as taxas de suicídio são altas, a radicalização do debate sobre estrangeiros tornou-se simplesmente tenebrosa e absolutamente vergonhosa – como se muita gente sensata na política dinamarquesa tivesse desistido, deixando a cada vez mais poderosa extrema-direita dominar toda a agenda-, mas não penso voltar a viver de novo em Portugal, especialmente agora que tenho família...
Talvez trabalhar esporadicamente em projectos artísticos futuramente, se no meu contributo ou colaboração os meus colegas portugueses virem alguma relevância, mas só nesse contexto.
11. Uma mensagem que gostavas de deixar aos leitores do meu blogue.
Mais uma vez, muito obrigado pelo teu interesse, Stran Ger.
Nakskov, 27 de Janeiro de 2010